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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Sobre interpretação das normas

1 – NOÇÕES DE INTERPRETAÇÃO

A interpretação pode ser conceituada como o processo lógico que procura estabelecer a vontade contida na norma jurídica, a fim de aplicá-la aos casos concretos da vida real. A ciência que se preocupa com a interpretação da lei é a hermenêutica.

A interpretação da lei penal segue as mesmas regras que norteiam a interpretação em geral, aplicável às outras leis. Há, entretanto, algumas particularidades na interpretação da lei penal, que serão a seguir examinadas.

2 – A EXPRESSÃO IN CLARIS NON FIT INTERPRETATIO

Muito se discutia a respeito da necessidade de interpretação quando a norma apresentava-se com suficiente clareza em seu texto, sem obscuridades ou contradições. Nesses casos, entendia-se como desnecessária a interpretação (in claris non fit interpretatio).

Atualmente, contudo, esse entendimento não prevalece.

A doutrina moderna é pacífica no sentido de que a interpretação é indispensável mesmo quanto às normas claríssimas, que não apresentam qualquer obscuridade. Essa a orientação atual: qualquer norma penal, por mais clara seja a sua letra, exige interpretação, que lhe explicite o verdadeiro significado.

3 – INTERPRETAÇÃO DA LEI E A "VONTADE DO LEGISLADOR"

Aspecto muito discutido na doutrina era o seguinte: a interpretação deve buscar alcançar a vontade da lei ou a vontade do legislador?

Atualmente a orientação é no sentido de que a interpretação deve buscar o real sentido da lei, sendo irrelevante, para esse fim, perquirir a chamada vontade do legislador. A vontade inicial do legislador pode não ser a que, após o término da elaboração normativa, tenha prevalecido, objetivamente, no texto da lei.

4 – ESPÉCIES DE INTERPRETAÇÃO

4.1 – Quanto ao sujeito que realiza a interpretação

Quanto ao sujeito que realiza a interpretação, temos:

- Interpretação autêntica;

- Interpretação jurisprudencial;

- Interpretação doutrinária.

a) Interpretação autêntica

A interpretação autêntica é a que procede da mesma origem que a lei. A interpretação é realizada pelo próprio sujeito que elaborou o preceito interpretado. A interpretação autêntica possui força obrigatória.

Essa interpretação pode ser contextual ou posterior.

A interpretação autêntica contextual ocorre quando já vem inserida na própria legislação, no próprio texto da lei interpretada. Ex.: o conceito de funcionário público contido no art. 327 do Código Penal (o próprio Código já interpreta a expressão "funcionário público" nele contida).

A interpretação autêntica posterior é aquela realizada por lei posterior, superveniente, que é elaborada para clarear o sentido duvidoso, as incertezas ou obscuridades de uma lei já em vigor.

A chamada "exposição de motivos" (justificativa que acompanha o projeto que deve ser convertido em lei) não é interpretação autêntica, uma vez que emana do autor do projeto-de-lei. Em verdade, a exposição de motivos é exemplo de interpretação doutrinária, pois consubstancia o entendimento do autor do projeto-de-lei.

b) Interpretação jurisprudencial

A interpretação jurisprudencial (ou judicial) emana dos órgãos do Poder Judiciário. São as reiteradas manifestações judiciais sobre um determinado assunto legal, que explicitam a orientação que os juízes e tribunais vêm dando à norma. São exemplos de interpretação judicial as súmulas dos tribunais (STF, STF etc.).

A interpretação jurisprudencial, o chamado precedente judicial, não tem força obrigatória no Brasil. Para cada novo caso concreto, deve o juiz fazer nova apreciação, em face de suas peculiaridades.

Ademais, o juiz não cria o Direito - deve apenas aplicar e animar o preceito legal, com o uso dos métodos gramatical e teleológico, estando impedido, conforme já vimos em aula pretérita, de aplicar a analogia in malam partem.

c) Interpretação doutrinária

A interpretação doutrinária é aquela oriunda do entendimento dado aos dispositivos legais pelos estudiosos, escritores ou comentadores do Direito (communis opinio doctorum). É também conhecida como doutrinal ou científica.

Essa interpretação, também, não tem força obrigatória.

4.2 – Quanto aos meios empregados

Quanto aos meios empregados na interpretação, temos:

- Interpretação gramatical;

- Interpretação lógica ou teleológica.

a) Interpretação gramatical

A interpretação gramatical, literal ou sintática, procura alcançar o sentido da norma examinando o sentido das palavras ou expressões empregadas pelo legislador. Conforme ensina o Prof. Mirabete (Ob. cit., p. 51), examina-se "a ‘letra da lei’, em sua função gramatical, quanto ao seu significado no vernáculo".

Em verdade, a interpretação gramatical deve ser a primeira utilizada pelo intérprete, na busca do significado da lei. Em primeiro lugar, recorre-se ao que dizem as palavras; após, não sendo a simples análise gramatical suficiente, recorre-se à interpretação lógica ou teleológica.

b) Interpretação lógica ou teleológica

A interpretação lógica ou teleológica consiste na indagação da vontade ou intenção objetivada na lei. Mostrando-se insuficiente a interpretação gramatical, faz-se necessário buscar a vontade da lei, por meio de um confronto lógico entre seus dispositivos, bem assim a finalidade do dispositivo, o seu sentido teleológico.

Em verdade, na maioria das vezes, a simples análise gramatical não é suficiente para a determinação da extensão e compreensão da norma, sendo necessária uma pesquisa mais acurada, com vistas a identificar qual a real finalidade de sua elaboração. Nessa interpretação, cabe ao intérprete investigar os motivos que determinaram a elaboração da lei (ratio legis); o fim visado pela lei (vis legis); as circunstâncias do momento em que foi elaborada a lei (occasio legis).

A doutrina aponta os seguintes elementos da interpretação teleológica:

- ratio legis, entendida como a finalidade da norma, identificando-se qual o bem jurídico que visa a proteger (vida, patrimônio, liberdade etc.);

- sistemático, entendido como o cotejo entre o preceito interpretado e as outras normas que regulam o mesmo instituto, ou com o conjunto da legislação e mesmo com os princípios gerais de Direito;

- histórico, que perquire a evolução histórica da norma, estudando a origem da lei, suas modificações etc. (análise das discussões parlamentares no curso do processo legislativo de elaboração da norma, da exposição de motivos etc.);

- Direito comparado, que é o Direito estrangeiro, aplicável em outros países;

- extrapenal, entendido como elemento político-social, significando afirmar que as instituições políticas, as relações entre os cidadãos e as autoridades políticas e administrativas devem influenciar na interpretação da lei;

- extrajurídico, pois há casos em que os conceitos jurídicos não são suficientes para estabelecer a vontade da norma, sendo necessário o exame de elementos extrajurídicos, sejam eles políticos, sociais, psiquiátricos etc. (p. ex., para interpretar o conceito "doença mental", previsto no art. 26 do Código Penal, utiliza-se o intérprete da Psiquiatria).

Finalmente, cabe ressaltar que o intérprete deve aplicar as regras de interpretação de forma integrada, harmonicamente, evitando contradição entre os meios gramatical e teleológico. Em caso de eventual contradição entre as conclusões da interpretação gramatical e da lógica, deve prevalecer esta última, uma vez que, nos termos do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil – LICC, "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

4.3 – Quanto ao resultado

Quanto ao resultado alcançado pelo intérprete, temos:

- Interpretação declarativa;

- Interpretação restritiva;

- Interpretação extensiva.

a) Interpretação declarativa

A interpretação declarativa ocorre quando o texto examinado não é ampliado nem restringido, encontrando-se apenas o significado oculto do termo ou expressão utilizados pela lei. Conforme ensina o Prof. Damásio de Jesus, a interpretação é meramente declarativa "quando a eventual dúvida se resolve pela correspondência entre a letra e a vontade da lei, sem conferir à fórmula um sentido mais amplo ou menos estrito".

Ex.: Determina o art. 141, III, do Código Penal, que nos crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) as penas são aumentadas de um terço se o fato é cometido "na presença de várias pessoas". Qual o mínimo exigido: duas ou três?

Deve entender-se que o mínimo é superior a duas, porque sempre que a lei se contenta com duas pessoas di-lo expressamente (art. 150, § 1º; art. 226, I etc.). Assim, não há ampliação ou restrição da norma, uma vez que o texto se refere a "várias pessoas" (exemplo do Prof. Damásio de Jesus).

b) Interpretação restritiva

Ocorre interpretação restritiva quando se reduz o alcance da lei para que se possa encontrar a sua real vontade. Nesse caso, a lei diz mais do que o pretendido pela sua vontade (lex plus scripsit, minus voluit), cabendo à interpretação restringir o alcance de suas palavras até o seu sentido real.

Ex.: Diz o art. 28, I e II, do Código Penal que não excluem a imputabilidade penal a emoção, a paixão ou a embriagues voluntária ou culposa. O dispositivo deve ser interpretado restritivamente, no sentido de serem considerados esses estados quando não patológicos, pois, de outra forma, haveria contradição com o art. 26, caput, do mesmo Código. Se o estado for patológico, aplicar-se-á o art. 26 e não o 28 (exemplo do Prof. Damásio de Jesus).

c) Interpretação extensiva

Ocorre interpretação extensiva quando há necessidade de ampliar o sentido ou alcance da lei. Nesse caso, o texto da lei diz menos do que pretendia dizer (lex minus dixit quam voluit ou lex minus scripsit, plus voluit).

Ex.1: O art. 130 do Código Penal, que define o crime de exposição a contágio de doença venérea, incrimina não só a situação de perigo como também a situação de dano efetivo (não obstante o tipo falar em "expor alguém... a contágio de moléstia venérea", deve ser ampliado para abranger o próprio contágio, o que corresponde à vontade da norma).

Ex.2: O art. 235, ao incriminar a bigamia, deve ser interpretado como abrangendo também a poligamia.

Ex.3: O crime de rapto (art. 219 do Código Penal) abrange não só o meio executivo (remoção) como também a retenção da vítima, não obstante o núcleo do tipo (raptar) significar arrebatar, roubar (os três exemplos são do Prof. Damásio de Jesus).

5 – INTERPRETAÇÃO PROGRESSIVA

Ocorre interpretação progressiva (adaptativa ou evolutiva) quando procura o intérprete adaptar a lei às necessidades e concepções do presente, identificando novas concepções ditadas pelas transformações sociais, científicas, jurídicas ou morais que auxiliem na aplicação da lei penal.

Ocorre, por exemplo, quando se busca o sentido da expressão "perigo de vida" (art. 129, § 1º, inciso II, do Código) diante do progresso da Medicina; da concepção de "doença mental" (art. 26) em face das novas descobertas da Psiquiatria; do que se deve entender por "mulher honesta", tendo em vista a evolução dos costumes etc.

6 – INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA

A interpretação analógica é utilizada quando fórmulas casuísticas inscritas em um dispositivo penal são seguidas de espécies genéricas, abertas. Nesse caso, utiliza-se a analogia (semelhança) para uma correta interpretação destas últimas normas (as genéricas, abertas).

Ex.: O art. 121, § 2º, IV, do Código comina a pena de reclusão de 12 a 30 anos se o homicídio é cometido "à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido".

Anote-se que temos aí uma fórmula casuística ("à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação"), seguida de uma fórmula genérica ("ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido").

Assim, o "outro recurso" mencionado pelo texto só pode ser aquele que, semelhante (análogo) à "traição", à "emboscada", ou à "dissimulação", dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.

São diversos os casos que o Código Penal autoriza o emprego da interpretação analógica: art. 28, II ("substância de efeitos análogos"); art. 71 ("e outras semelhantes"); art. 146 ("qualquer outro meio"); art. 171 ("qualquer outro meio fraudulento") etc.

A interpretação analógica não deve ser confundida com o emprego da analogia.

A interpretação analógica visa a alcançar a vontade da norma por meio da semelhança com fórmulas utilizadas pelo legislador, conforme o exemplo citado acima.

O emprego da analogia constitui técnica de integração da legislação e visa a suprir uma lacuna deixada pelo legislador, aplicando-se a um fato não regulado pela lei uma outra norma penal que disciplina fato semelhante.

7 – O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO NA INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL

Questão muito discutida na doutrina diz respeito à aplicação, em matéria penal, do princípio in dubio pro reo. Como se sabe, esse princípio reza que, havendo dúvida quanto ao alcance da norma penal, deve ser o caso decidido de forma mais favorável ao agente.

Atualmente, a melhor doutrina admite aplicação desse princípio em matéria penal, mas com ressalvas, com abrandamento.

Assim, ensina a doutrina que a aplicação do princípio in dubio pro reo deve ocorrer após criteriosa pesquisa do intérprete sobre o alcance da norma. Em outras palavras: se, diante do caso concreto, houver possibilidade de aplicação de outras interpretações, deve seguir-se a que melhor se conforme à vontade da lei e ao sistema do Código Penal, seja ou não a mais favorável ao réu. Somente quando resultar inútil qualquer processo de interpretação do texto legal é que se deverá aplicar tal princípio.

QUESTÕES SOBRE O ASSUNTO.

1 – Em se tratando de matéria penal, firmou a doutrina o entendimento no sentido de que as leis, por mais claras que sejam, não prescindem de interpretação. Com isso, afastou-se a aplicação, entre nós, da máxima in claris non fit interpretatio. ( )

2 – A interpretação da lei penal tem fundamento em regras específicas, completamente distintas daquelas aplicáveis à interpretação das demais normas jurídicas. ( )

3 – Segundo a concepção moderna, no processo de interpretação deve o intérprete identificar a chamada "vontade do legislador", sendo irrelevante a vontade da lei. ( )

4 – Segundo a melhor doutrina, não é possível, em matéria penal, a aplicação do brocardo in dubio pro reo. ( )

5 – Ocorre a chamada interpretação analógica quando o intérprete busca adaptar a lei penal às necessidades e concepções do presente. ( )

GABARITO: 1 C; 2 E; 3 E; 4 E; 5 E.

Obras Consultadas:

Direito Penal – Volume 1, Parte Geral – Damásio E. de Jesus (Saraiva)

Manual de Direito Penal – Volume 1, Parte Geral – Júlio Fabbrini Mirabete (Atlas)

Princípios Básicos de Direito Penal – Francisco de Assis Toledo (Saraiva)

Sinopses Jurídicas – Direito Penal, Parte Geral – Victor Eduardo Rios Gonçalves (Saraiva)


Fonte

A publicização do Direito Privado e a privatização do Direito Público

O direito privado, na atualidade, tem seguido conceitos essencialmente públicos, e entre eles a contemplação de normas de ordem pública, preceitos de interesse geral, e principalmente respeito à função social e a dignidade da pessoa humana, em busca de um ideal de justiça.
Após a Constituição de 1988, o ente público passou a atuar também sob a égide da lei privada, e o ente privado, muitas vezes, aparece exercendo funções que deveriam ser do Estado, dessa forma, o poder público atua na esfera privada em várias ocasiões, e da mesma forma, os entes privados exercem funções tipicamente públicas.
Assim, a tradicional dicotomia entre direito público e direito privado perdeu campo, e abriu espaço à tendência de publicização do direito privado e privatização do público, ou ainda, a "constitucionalização do direito civil" e a "civilização do direito constitucional.
A constitucionalização ou publicização do Direito Civil trouxe soluções de maior legitimidade e justiça nas relações contenciosas, ao passo em que se verifica também a privatização ou civilização do Direito Público, em que o estado utiliza-se da norma civil para executar suas atribuições, ou seja, os ramos se inter-relacionam e se socorrem para funcionalizar seus institutos. No entanto, cada um mantém-se como um sistema de normas e princípios, conservando sua essência.
Neste sentido é a lição de Leonardo Mattietto quando afirma que “Direito civil constitucional é o direito civil como um todo, já que não há como divisar nenhuma parte do direito civil que fique imune à incidência dos valores e princípios constitucionais. Logo, não só os institutos que receberam previsão constitucional compõem o direito civil constitucional, mas a inteira disciplina civilística, nesse juízo renovado”.[1]
Os interesses públicos e privados devem caminhar com um mesmo objetivo, e não devem divergir ou adentrar em rumos distintos, mas sempre levar em conta a dignidade da pessoa humana, e a valorização do indivíduo.
A visão social das relações privadas confere um novo caráter ao poder público, pois nessa esteira, o Estado se afigura como garantidor do equilíbrio da ordem privada, e alguns institutos do direito privado devem ser disciplinados na Constituição, e situações antes reguladas apenas pelo direito privado são disciplinadas pelo direito público.
É óbvio que não se está negando caráter preponderantemente privado ao contrato, à propriedade, à família e outros institutos originários do direito civil, pois se conservam como de Direito Privado, porém levadas à norma constitucional assumem caráter público, e a sua publicização traduz-se como função social, onde há um interesse maior, representado pela ordem social, em que ocorre a intervenção do Estado nas relações sociais.
Não obstante a relevância de tais mudanças, não se pode concluir que as normas de direito privado estão sendo substituídas pelas normas constitucionais, pois o Código conserva seu papel e espaço no universo jurídico, e continua disciplinando a essência das relações jurídicas privadas, no entanto qualificada pela norma pública, dando maior relevância a seu conteúdo, pois além de satisfazer os interesses dos particulares, também preserva o interesse social.
Hoje, o particular entende que a responsabilidade social não está mais concentrada na mão do Estado, mas está em toda a sociedade civil, pois as ações particulares repercutem na vida da comunidade, e o indivíduo que age em prol de si mesmo, tem seus atos refletidos no meio em que vive. As ações particulares repercutem na vida do indivíduo e da comunidade em que vive.
Ao longo do tempo, o Estado assumiu várias atividades exercidas antes exclusivamente pelos particulares, e ao mesmo tempo o ente público tem se valido de mecanismos peculiares ao particular, para executar algumas de suas tarefas, e os negócios entabulados regem-se, preponderantemente, pelos princípios e normas dos contratos presente no sistema privado.
Por exemplo, a responsabilidade civil do Estado, oriunda de dano aos particulares, rege-se pela norma civil, utilizando o conceito e a sistemática do ato ilícito e das formas de sua reparação, em que a apuração do ato ilícito, a extensão e reparação do dano serão fundamentadas com base nos artigos 186/187 e 944 a 954 do Código Civil.
Em contrapartida vários institutos do Direito Privado devem ser interpretados e aplicado à luz do Texto Constitucional, pois neles há interesses que ultrapassam os interesses privados, e o individualismo com que os institutos de direito civil foram concebidos não se sustenta diante dessa visão social do direito, cada dia mais comprometido com a ordem pública.
Essa proximidade entre as fronteiras dos dois ramos permite a ambos acessar o terreno um do outro, porém tal possibilidade não desmerece nem um nem outro ramo, antes os valoriza e enriquece, tornando-os mais ágeis na consecução de seus fins.
Mais importante do que buscar uma delimitação entre os campos jurídicos é encontrar a adequação do Direito às complexas e ilimitadas necessidades sociais.
Tal fenômeno se verifica, por exemplo, nas relações contratuais firmadas entre particulares, que atualmente estão sujeitas à Constituição, a qual não mais admite contratos que não visam à função social, e nesse sentido não deve ser considerado lícito um contrato firmado com fins anti-sociais e com a intenção de ofender interesses protegidos por normas constitucionais.
A Constituição brasileira prevê diversos dispositivos ligados a direitos sociais, e tais direitos visam uma democracia social na qual são assegurados: segurança social, saúde, habitação, ambiente, qualidade de vida, entre outros. Todos esses direitos e garantias acabam por interferir diretamente no direito obrigacional.
O princípio da autonomia da vontade que vincula o sistema contratual deve interagir com outros princípios e outras regras do sistema, como o da função social e o da boa-fé, aos quais se somam a possibilidade de revisão por fato imprevisto e a relatividade. [2]
Outro sinal claro da inter-relação entre Direito Público e Direito Privado é a funcionalização do direito de propriedade.
Anteriormente, a definição de propriedade seguia o modelo romano, alicerçada nos direitos de uso, gozo, disposição e reivindicação de uma coisa, e caracterizada como um direito de usá-la de forma absoluta, e insuscetível de limitação pelo Estado. O egoísmo era o sentimento que impregnava o direito de propriedade.
Porém, atualmente, o direito à propriedade é visto por uma ótica social, despojando-se de seu caráter absoluto e estático para situar-se como um direito relativo e dinâmico.
O exercício da propriedade, embora consistindo uma expressão da liberdade do homem, impõe ao seu detentor a obrigação de considerar o conceito de solidariedade social, na medida em que a propriedade tem relevante importância, pois é instrumento destinado à produção de riquezas e de sustento do homem, e assim, deve haver a conciliação entre o individualismo do domínio e as expectativas da sociedade.
Em relação a família, também há essa inter-relação, onde antes o marido era quem preponderava na administração do lar, e o casamento era visto como a fonte propulsora da célula familiar.
Atualmente, a entidade familiar atende ao princípio da igualdade material entre os cônjuges e reconhece a afeição, e não o formalismo, como causa justificadora da organização familiar.
O Código Civil de 2002, seguindo tal tendência, fundamentou a concepção de família no princípio da dignidade da pessoa humana, com um núcleo que se organiza a partir da afeição e que se destina à busca de objetivos comuns.
Entre o casal se estabelece uma comunhão de interesses, e todos os membros têm na família, um espaço para o exercício dos direitos de personalidade. Anteriormente, a instituição família era superior aos seus componentes, e com a nova ordem seus membros, considerados em sua individualidade, assumem maior importância.
Assim, a família constitui num ambiente de desenvolvimento da personalidade dos filhos e da promoção da dignidade de seus componentes.[3]
Com o Texto Constitucional de 1988, a pessoa passou a ser vista como multiplicidade de manifestações e portador de valores, tais como a dignidade, a igualdade e a liberdade.
A pessoa, destinatária última dos valores perseguidos pela sociedade e pelo sistema jurídico, é o alvo para o qual converge a organização familiar e todo o aparelhamento político-social-economico, e a pessoa não é mais o sujeito de direito considerado somente em termos econômico e produtivos.

Conclusão
O Direito é um sistema de normas e princípios que emanam de práticas e costumes da sociedade, cuja lei máxima é a Constituição. A lei é produto da vontade geral, e está acima da vontade individualizada do homem.
A Constituição elegeu a liberdade e o respeito à dignidade do ser humano, que emergem como princípios maiores a serem seguidos, e tais preceitos fazem parte do patrimônio inalienável e intangível das pessoas.
O direito deve regular a liberdade e o exercício da vontade, levando em conta sempre a dignidade da pessoa humana, pois a vontade geral somente pode ser exercida se estiver em harmonia com a vontade geral da sociedade.
O Direito Privado tem o centro de ação na pessoa humana, pois é o sujeito de direito que figura no núcleo das relações jurídicas, além de regular os interesses dos indivíduos em sociedade e disciplinar as suas responsabilidades.
A razão de existência da sociedade, da organização do Estado, e da relação de direitos e deveres, tem o foco central na pessoa humana. É finalidade do Estado promover condição para que as pessoas se tornem dignas. E a dignidade da pessoa humana não é um princípio que deve ser guardado somente pelo Estado, mas deve ser perseguido constantemente por toda a sociedade, sendo o norte a ser levado em conta na interpretação de todo o ordenamento jurídico.
Portanto, necessária uma interpretação sistemática e harmônica da regra constitucional e dos preceitos de Direito Privado, formando uma via de mão dupla, em que o Direito Privado deve ser interpretado levando em conta os princípios e preceitos Constitucionais, e os institutos próprios do direito civil recebem uma nova perspectiva diante da atual ordem social que permeia o ordenamento jurídico, que deve ser compreendida em conjunto com a ordem pública.
O Estado atua diretamente em várias situações privadas com intuito de assegurar o equilíbrio na relação entre os entes particulares. E em contrapartida, algumas situações próprias do Estado, nessa nova perspectiva, são atribuídas ao particular, e sua disciplina sofre a incidência da norma privada.
Devem ser adotados novos paradigmas para aplicar a norma de direito privado de forma sistemática e em franca sintonia com interesse público, assim como o Estado deve exercer suas funções sempre que necessário, por meio do sistema privado, visando a eficiência na aplicação do bem coletivo e para atingir os fins legais.
A solução para os conflitos não pode mais ser dada somente com base nos artigos da lei que aparentemente regem o fato, mas sim levando em conta a Constituição e os princípios fundamentais que a regem, bem como a totalidade do ordenamento jurídico, provocando o diálogo das fontes.
Não obstante a relevante importância do Código Civil, das leis especiais e microssistemas existentes no mundo jurídico, hoje se faz imprescindível e urgente a interpretação dessas normas à luz dos princípios e regras constitucionais, provocando uma releitura do ordenamento jurídico, e o revigoramento dos institutos de direito civil, sob o enfoque da nova realidade que permeia a sociedade atual e, portanto é vital a necessidade de inserção das normas civis nas normas constitucionais e na ordem pública.
Nos dizeres de Gustavo Tepedino, na realidade não se trata de sobreposição de princípios, mas de interpretação de direito privado e direito público, de forma a se reelaborar novos parâmetros para a definição da ordem pública e de direito civil à luz da Constituição, a fim de se valorizar a dignidade da pessoa humana, os direitos sociais, e a justiça distributiva, e para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais.
De tal forma que, as mudanças inseridas pelo novo Código Civil sofreram incidência direta dessa nova ordem constitucional, surgida em 1988, em que foram rompidas estruturas já há muito ultrapassadas, mas que permaneciam presentes no Código Civil de 1916.
A Constituição Federal de 1988 representou um marco e influenciou de forma decisiva a estruturação de um novo ordenamento jurídico, permeado por novos conceitos surgidos a partir da atual situação social existente no país, em consonância com a nova estrutura mundial.
O novo Código Civil não permanece estanque, em que pese ser um diploma legal recente comparado com as demais estruturas jurídicas vigentes, visto que, já sofreu algumas mudanças em razão até mesmo de decisões proferidas por tribunais, pioneiras no reconhecimento de novas estruturas jurídicas, observadas em situações fáticas.
A sociedade é uma estrutura em perene transformação que clama por adotar novos paradigmas, nesse contexto é que se visualiza o Código Civil à luz da Constituição, ou seja, a norma privada à luz do interesse público, e a busca da efetividade da ordem pública por meio de preceitos privados, providência salutar para a modernização do ordenamento jurídico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. AMARAL NETO, Francisco. Descodificação do Direito Civil. In: XVI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Fortaleza-CE, 1996. OAB, Conselho Federal, 1997.
2. COSTA, Judith Martins. O direito privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 753, jul. 1998.
3. LOTUFO, Renan (Coord.). Direito Civil Constitucional. Caderno 1. Max Limonad. 1999.
4. LOTUFO, Renan (Coord.). Direito Civil Constitucional. Caderno 3. Malheiros Editores. 2002.
5. TEPEDINO, Gustavo (Coord.).Problemas de Direito Civil-Constitucional. Renovar. 2000.
6. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Renovar. 3ª Edição. 2004
*dESEMBARGADOR DO tRIBUNAL DE jUSTIÇA DE sÃO pAULO
Coordenador de Livros, Revistas e Eventos da Escola Paulista da Magistratura
Presidente da Academia Paulista de Magistrados


[1] MATTIETTO, Leonardo. O Direito Civil Constitucional e a nova teoria dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 170
[2] COSTA, Judith Martins. O direito privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 753, jul. 1998
[3] TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Civil-constitucional das Relações Familiares, in Temas de Direito Civil. org. do autor. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999;

Fonte

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Direito Civil I. Semana 2 a. Personalidade civil e pessoa natural.

Prezados alunos, minha intenção é pôr legendas nesse filme. Por favor, colaborem. No espaço abaixo, reservado aos comentários, vamos transcrever o áudio. Cada um faz um pouquinho. Assim, logo logo, teremos a matéria toda também escrita.


Direito civil. Semana 2. Personalidade civil e pessoa natural. from Danilo Badaró on Vimeo.